Por Dr. Rosinha
Introdução
Por razões distintas a França e a Holanda disseram “não” à proposta de um Tratado Constitucional (Constituição da União Européia – UE). Essas negativas foram a gota d’água (há outras razões) para levar a UE a uma grave e profunda crise política. Uma das razões do “não” é o fato de jamais ter sido construída uma cidadania dentro do bloco europeu. E os eventos da França no final de 2005, não pelo todo, mas em parte também é resultado desse processo.
Apesar de altos investimentos econômicos, financeiros e sociais, além da criação de símbolos (por exemplo, a bandeira da UE está presente em todos os edifícios públicos da Europa), a União Européia não conseguiu criar uma cidadania de bloco e uma identidade comum. Pelo contrário, a identidade nacional de cada país se fortaleceu em nacionalismos de direita.
No Mercosul também inexiste a identidade de cidadão do bloco. Mas este fato ainda não é preocupante para o Bloco uma vez que ele é incipiente, se comparado com a UE e é diferente no processo de construção[1]. O tempo de formação, por exemplo, é uma das razões de ser ainda incipiente. Enquanto a União Européia tem mais de meio século de criação[2], o Mercosul, oficialmente criado em 1991[3], acaba de entrar em sua fase de adolescência, portanto os europeus têm uma experiência importante e que deve ser levada em consideração.
Para a elaboração do Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul procuramos analisar os erros das várias experiências mundiais da constituição de Parlamentos Supranacionais e entendemos que a experiência européia era a que melhor nos servia. Há uma diferença enorme entre as razões de criação da União Européia da criação do Mercosul, mas a experiência não deve ser desprezada. Alguns dos erros cometidos pelos europeus na criação de seu Parlamento devem ser evitados.
Foram várias as preocupações que tivemos para elaborar o Protocolo do Parlamento do Mercosul, sendo duas delas as mais importantes: uma nova institucionalidade e a construção da cidadania no Mercosul. O déficit de cidadania, portanto de democracia, no Mercosul não será zerado com um Parlamento, mas sem dúvida será diminuído, principalmente pela participação da população em eleições diretas em todos os Países do Bloco.
Parlamento do Mercosul[4].
Na XXIX Reunião do Conselho do Mercado Comum (CMC) realizada em Montevidéu, no dia 8 de dezembro de 2005, foi aprovado e assinado [5] pelos Presidentes dos países membros do Mercosul o Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul. Este Protocolo foi debatido pelos membros da Comissão Parlamentar Conjunta (CPC) durante três anos e foi construído por consenso. Este consenso significa qualidades e também debilidades. O consenso permitiu a sua construção política – uma qualidade-, mas neste caso foi produzido um documento com debilidades. No caso, no mínimo duas que limitarão a construção da cidadania e a identidade política, que são: 1) não permitir a representação proporcional na primeira legislatura; e, 2) não estabelecer a criação de famílias políticas para a disputa das eleições diretas. Essas limitações, ao invés de ajudar a superar o déficit democrático existente no Mercosul, podem aprofundá-lo.
Os membros da primeira legislatura exercerão um mandato de quatro anos e serão indicados pelos Parlamentos Nacionais escolhidos entre seus pares (eleições indiretas), portanto devem ser Parlamentares Nacionais e do Mercosul[6]. A segunda legislatura, a partir de 2011, será composta por Parlamentares eleitos em eleições diretas e especificamente para este cargo, não podendo acumular o mandato de Parlamentar Nacional. São definições importantes para a construção de um bloco político com cidadania.
A indicação indireta para o parlamento afasta o povo do debate político, o que dificulta a criação de uma identidade política e a formação da cidadania. Sem o voto, o cidadão não se identifica com o processo de formação. Não se sente agente do mesmo, por isso no Protocolo estabelecemos um período curto (quatro anos) sem eleições diretas[7].
Na condição de membro de ambos os parlamentos, o parlamentar confundiria suas posições políticas. Deve o Parlamentar integrante do Parlamento do Mercosul defender as posições relativas aos direitos de todos os cidadãos e cidadãs do bloco, e não as referentes a políticas nacionais. Caso decisões de caráter nacional tenham que ser tomadas, os Parlamentares das diferentes famílias políticas ideológicas do Estado Parte se reúnem e decidem que posição tomar.
Nova Institucionalidade e Cidadania
O processo de globalização vem conformando diferentes blocos econômicos, alguns deles com institucionalidade própria, como é o caso do Mercosul. Nestes processos as decisões vão sendo transferidas da esfera do Estado para o âmbito das instituições responsáveis pela integração. No caso do Mercosul as decisões estão a cargo do Conselho do Mercado Comum, onde estão representados os governos de cada um dos países, e não no conjunto das forças políticas presentes e atuantes na região. O cidadão comum não participa, não tem conhecimento do que está sendo debatido.
O povo está distante do processo decisório, e impotente para nele intervir e se fazer representar. Dessa forma, as normas produzidas pelos órgãos da integração carecem de legitimidade, uma vez que não são suficientemente debatidas pela sociedade e sequer pelos Parlamentos Nacionais. Inclusive a grande maioria dos parlamentares nacionais simplesmente desconhece os assuntos e os acordos em questão.
Os controles exercidos pelos Parlamentos Nacionais, na forma de aprovação dos tratados não sanam o déficit democrático, até porque não é possível corrigir ou modificar o texto – seja por erro de redação ou não concordância com o mérito –, quando há discordância. Outra questão muito importante é que muitos dos acordos ou tratados do Mercosul não são submetidos à aprovação do Parlamento para serem incorporados ao arcabouço legal do país. Estas são razões suficientes para criar um espaço institucional (Parlamento) de debate, onde direta ou indiretamente o cidadão e a cidadã possam participar contribuindo com a sua legitimação.
O Parlamento do Mercosul não será a solução, mas será um órgão que terá o papel de ouvir o povo e procurar representá-lo, ainda que indiretamente. Também terá como direito e dever, pela própria distância política dos parlamentos nacionais, de fazer o acompanhamento de todo processo de negociação do Mercosul. Com o novo parlamento, muitos tratados do Mercosul que hoje não são submetidos à aprovação dos Parlamentos Nacionais, acabarão por sê-lo (mesmo que politicamente) pelo Parlamento do Mercosul.
O processo de globalização leva os países e os blocos a debaterem de forma permanente todos os aspectos da política (econômica, ambiental, cultural, financeira, serviços, etc.) internacional e a assinar acordos e tratados. Em geral, os debates sobre esses acordos ocorrem no Executivo, quase nunca no Legislativo.
Somente a atuação nos Parlamentos Nacionais é insuficiente para organizar a intervenção na política externa, por várias razões. Uma das razões desta insuficiência é a cultura política nos parlamentos, partidos e sociedade em geral, que o parlamentar tem que permanecer dentro do Parlamento do seu país e que não pode viajar. Quase sempre são acusados de estarem mais interessados em “fazer turismo” do que defender os direitos do povo. Esta acusação é recorrente porque o cidadão não conhece as razões dos blocos, e tampouco o conteúdo dos tratados internacionais; tratados esses que não raramente podem subtrair seus direitos.
O Parlamento do Mercosul vai representar o cidadão da região e não será superior aos Parlamentos Nacionais. Também, pelo processo da eleição direta e universal contribuirá na mudança de cultura e na construção de uma identidade política de Bloco, pois o cidadão estará votando num parlamentar para atuar num contexto supranacional e em temas de política externa que envolva o Mercosul. A eleição direta também consagra o princípio da legitimidade democrática e contribui para a criação de uma identidade regional e conseqüentemente de uma cidadania regional.
O Parlamento do Mercosul, numa segunda fase, estimulará a conformação de famílias político-ideológicas, propiciando aos parlamentares uma visão comum dos problemas da região. Também será o aglutinador de distintas posições políticas sobre o Bloco ao mesmo tempo que será um órgão da estrutura do Mercosul dotado de uma visão de comunidade.
Cada Estado Parte definirá internamente como se dará o processo de eleições diretas, que no caso do Brasil será em 2010[8]. A nossa representação no Parlamento do Mercosul será “atenuada”[9] e, será definida por um índice, ainda não estabelecido. Não só no caso brasileiro, mas no de todos os países do Mercosul, a definição deste índice deve ter como objetivo, também, a superação da cultura de exclusão em relação ao gênero e às etnias. Portanto cada país deve, ao definir o processo interno de eleições para o Parlamento do Mercosul, fazer o debate de reservas de cotas (não de candidatos, mas sim de vagas no Parlamento) de gênero e de etnia.
Atribuições
Para o Mercosul ter uma característica intergovernamental[10] os parlamentares do Parlamento do Mercosul não terão a função de legislar, mas sim desempenhar um papel político e consultivo, cujas características básicas serão a da construção da cidadania e dar transparência aos atos referentes ao Mercosul.
Os artigos 2 e 3 do Protocolo que definem os propósitos e princípios do Parlamento do Mercosul estabelecem o papel político do Parlamento ao dar a ele o propósito de representar os povos do Mercosul com sua “pluralidade ideológica e política”. Para cumprir com este propósito o Protocolo estabelece como um dos princípios “o repúdio a todas as formas de discriminação, especialmente às relativas a gênero, cor, etnia, religião, nacionalidade, idade e condição socioeconômica”, bem como o “respeito aos direitos humanos em todas as suas expressões”.
O artigo 4 do Protocolo, e seus incisos definem as competências consultivas do Parlamento do Mercosul (PM). O inciso 4 dá ao Parlamento a competência de “efetuar pedidos de informações ou opiniões aos órgãos decisórios e consultivos do MERCOSUL” e estabelece prazo para as respostas.
Estabelece este artigo a condição do Parlamento convidar[11] aos Presidentes Pró Tempore[12] do Conselho do Mercado Comum (CMC) para debater o processo de integração[13] e a cada seis meses o Presidente que toma posse deve apresentar o programa de trabalho[14] e o que sai, o “relatório sobre as atividades realizadas”[15].
Ainda, por meio de sua competência consultiva[16] o Parlamento emitirá parecer sobre as normas aprovadas pelo Conselho do Mercado Comum. Para tanto, debaterá os temas em questão por meio da realização de audiências públicas com as entidades da sociedade civil, permitindo-lhes, em primeiro lugar, tomar conhecimento das normas em negociação, e assim, expressar as suas opiniões e inquietudes. Dessa maneira contribuirá, decisivamente, para a transparência e para a legitimidade social do processo de integração, fomentando ainda a construção de uma consciência de cidadania no Mercosul. Aquelas normas adotadas pelo Conselho, em conformidade com o parecer do Parlamento, receberão tratamento específico e mais ágil dos Parlamentos Nacionais, contribuindo para a segurança jurídica do bloco.
Incorporar valores
É preciso ressaltar que não será um Parlamento com competência para sobrepor as suas decisões àquelas dos Parlamentos Nacionais. Tampouco será um órgão desprovido de significado na construção do Mercosul.
Com o Parlamento cria-se na esfera regional um espaço destinado ao debate, pelos cidadãos, das normas em negociação nos órgãos do Mercosul, o que contribuirá para a sua legitimação. Com isto diminuirá o déficit democrático existente no Mercosul e nas relações internacionais, principalmente no que diz respeito a participação da sociedade nos processos decisórios da integração.
O Parlamento terá um significado importante na construção do Bloco porque permitirá que as forças políticas da região façam o debate e incorporem valores – como diretrizes para o processo de integração, valores da cidadania com justiça social, respeito aos direitos humanos e a priorização da educação e do avanço tecnológico – que possibilitem o reconhecimento do Mercosul como um bloco estratégico de desenvolvimento para que num breve futuro não amarguemos o “não” que a Europa está amargando.
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* Agradeço a colaboração de Maria Cláudia Drummond, consultora do Senado da República do Brasil e à Zélia Stein, assessora da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul (CPCM), pelas sugestões temáticas incorporadas ao texto. Agradeço, também, à Cristina Vannucchi Leme pela revisão.
[1] O Mercosul é intergovernamental enquanto a União Européia é supranacional. No intergovernamental a decisão é por consenso, enquanto no supranacional é por voto de maioria.
[2] A integração européia teve início com o Tratado de Paris em 1951 e os Tratados de Roma em 1957.
[3] Tratado de Assunção (26/03/1991).
[4] O Parlamento do Mercosul foi instalado com a presença do Presidente Lula no dia 14 de dezembro de 2006. Atualmente trabalha uma Comissão que debate a organização de Primeira Sessão que será no dia 26 de março de 2007 (aniversário do Tratado de Assunção) e da eleição da Mesa Executiva no dia seguinte.
[5] Mercosul/CMC/DEC Nº 23/05.
[6] Por muitos anos os parlamentares europeus também eram deputados nacionais e escolhidos pelos seus respectivos pares e avalia-se hoje que isto prejudicou a construção da cidadania na União Européia.
[7] A primeira eleição direta para o Parlamento Europeu ocorreu em 1979. O Parlamento Europeu passou a ser assim, politicamente chamado, após 30 de março de 1962, porém foi oficializado quando da assinatura do Ato Único Europeu, em fevereiro de 1986. Antes, o Tratado de Paris (1951) e os Tratados de Roma (1957) o designavam, Assembléia e a eleição era indireta.
[8] Artigo 6, inciso 2 do Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul estabelece que “o mecanismo de eleição dos Parlamentares e seus suplentes reger-se-á pelo previsto na legislação de cada Estado Parte, e que procurará assegurar a adequada representação por gênero, etnias e regiões conforme a realidade de cada Estado”.
[9] O debate levado a cargo no processo de construção do Protocolo do Parlamento do Mercosul provavelmente levará à definição de uma proporcionalidade de representantes (parlamentares), em relação à população de cada país. Como o Brasil tem uma população muito superior aos demais países do Bloco, na definição desta proporcionalidade serão definidos um piso e um teto de Parlamentares (um só país não pode ter mais de 50% mais um dos deputados), que chamamos de “proporcionalidade atenuada”.
[10] A União Européia é supranacional, portanto seus parlamentares podem legislar.
[11] Não se pode convocar porque o Mercosul é intergovernamental.
[12] A cada seis meses um País do Mercosul preside o bloco.
[13] Artigo 4, inciso 5 do Protocolo do Parlamento do Mercosul (PPM).
[14] Artigo 4, inciso 7 do PPM.
[15] Artigo 4, inciso 6 do PPM.
[16] Artigo 4, inciso 12 do PPM.